Segunda-feira, 5 de Março de 2007

Do real ao romance

Eça de Queirós esteve em Leiria cerca de um ano, reduzido período de tempo, mas as referências ao espaço citadino e arredores são uma constante na sua obra O Crime do Padre Amaro. Se o espaço físico figura na obra de forma abundante, o espaço social não é menos retratado. O romance O Crime do Padre Amaro mostra as relações existentes entre as várias personagens que habitam determinados espaços. Como em qualquer romance, o autor exprime aquilo que é real, em termos de espaço físico e nas relações sociais, introduzindo neles a ficção inerente às vivências do escritor. A referência a lugares ou personagens identificáveis pelo leitor cria um “efeito real”, como que tornando as personagens e locais verdadeiros, aumentando assim, o interesse do leitor pela obra.

 

Voltando à obra O Crime do Padre Amaro, a situação é exemplar. Qualquer leiriense que inicie a leitura identifica inúmeros espaços e personagens, ficando com a percepção de uma vivência efectiva da cena.

 

O espaço citadino é o mais valorizado e é onde se passa a maior parte da acção. Os locais são facilmente identificáveis: Torre Sineira, Sé, Administração do concelho (edifício no Largo da Sé), Botica do Carlos (Farmácia Paiva), casa da S. Joaneira (Casa da Travessa da Tipografia), Praça (arcadas), Rossio e Alameda Velha (Marachão).

O espaço rural é muito variado e dificilmente identificável. Dulcelina Santos organiza-os em quatro grupos:

 

1.      As entradas e saídas da cidade, com traços identificáveis actualmente: “Estrada da Figueira com a Ponte Velha que dava para a Alameda Velha (Marachão); a estrada dos Marrazes – a caminho do Morenal; a Estrada de Lisboa – “paisagens de colinas tristes e árvores enfezadas”; o largo do Chafariz (Fonte da Três Bicas) – onde chega a diligência do Chão de Maçãs, com os visitantes e o correio da tarde (Mala-posta).”

 

2.      “Com o evoluir da acção, Eça leva-nos para fora da cidade: os encontros de Amélia e Amaro na Quinta de D. Maria, as idas ao Morenal, os passeios pelo Atalho da Barroca e Caminho de Sobros e as passagens por Cortegaça.” Ao longo da sua leitura, o leitor é induzido para um cenário localizado na direcção do mar (Barosa?) e, por outro lado, para locais mais interiores como Cortes, Marrazes ou Pousos.

 

3.      A Praia da Vieira é lugar de tradição para “ir a banhos”. “Enquanto uns saboreiam regaladamente esse hábito burguês, Amélia e Amaro sofrem dramaticamente o exílio de Amélia na Quinta da Ricoça, a cerca de meia légua da cidade, perto dos Poiais para o lado da Barrosa”. Segundo Dulcelina Santos, a toponímia, com excepção da Praia da Vieira, continua a baralhar-nos. Parece haver uma identificação com a Barosa, não só pelas suas descrições e distâncias, mas pela toponímia Barrosa.”

 

4.      “Um conjunto de lugares mais distantes da cidade e menos ligados à acção, perfeitamente localizáveis pela coincidência da toponímia: freguesia de Amor e de Santa Catarina, Alcobaça, Pombal e Ourém. A propósito de Santa Catarina (supostamente “da Serra”), onde o Barão de Salgueiro tinha uma quinta e uma casa apalaçada (ainda existe no lugar a “Quinta do Salgueiro”), Eça faz dizer ao Padre Natário, comentando “o pecado que vai pelo mundo”: “Mas a freguesia de Santa Catarina era a pior! As mulheres casadas tinham perdido todo o escrúpulo – piores que cabras”.

 

Confirma-se que a referência a espaços e ambientes identificáveis no romance é muito superior aos não identificáveis. Os identificáveis trazem realismo à obra e favorecem uma visão da cidade, levando o leitor a imaginar a acção. Os espaços não identificáveis, ou de difícil identificação, são aqueles em que a intriga e o drama são maiores, levando o leitor a sentir compaixão, vergonha, ódio e revolta. Eça terá aqui aliado a realidade à ficção, de modo a que o crime e a tragédia não fossem facilmente associados a um local preciso. Terá sido intencional segundo Dulcelina Santos. Afirma ela: “Não poderia ser de outro modo, pois, se o fosse, a história aproximar-se-ia de um fait diver, perdendo a dimensão modelar ou arquetípica que distingue todos os grandes romances”.

 

Fonte:

  • SANTOS, Dulcelina (2000). “Do espaço romanesco ao espaço real”, Jornal de Leiria (Suplemento), 19 de Outubro
Sentimo-nos: Exploradores
Publicado por Twice às 11:52
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